Por: Dra. Mariana Lopes Leão
Doutora em Higiene Veterinária e Processamento Tecnológico de Produtos de Origem Animal, Mestre em Microbiologia e Parasitologia Aplicadas e Bióloga.
A desinfecção da água tem sido praticada por milênios, embora os princípios envolvidos no processo ainda não fossem conhecidos. Atualmente, estudos demonstram que os biocidas, também conhecidos como desinfetantes, podem atuar sobre os microrganismos de diferentes modos.
Alguns modificam a permeabilidade da parede celular, alterando processos vitais que permitem a sua reprodução. Outros reagem irreversivelmente com enzimas do microrganismo, interferindo em todo o seu metabolismo, até provocar a sua morte. De toda forma, o conhecimento dos mecanismos de ação desses biocidas, a identificação dos microrganismos e bioquímica do sistema são ferramentas essenciais na escolha do desinfetante à ser empregado no tratamento de água.
Atuação dos Biocidas
O tratamento de água para abastecimento tem
por objetivo torná-la adequada aos parâmetros sanitários para potabilidade estabelecidos pelas diretrizes e portarias em vigor. Segundo a definição da FUNASA (2009) a água potável é aquela apropriada para consumo humano, em que seus parâmetros microbiológicos, físicos, químicos e radioativos atendam ao padrão de potabilidade e que não ofereça riscos à saúde.
Atualmente existem várias tecnologias e desinfetantes químicos que podem ser empregados para o tratamento da água bruta. Em sua definição, desinfetante é uma substância quimicamente oxidante, que inativa as formas vegetativas, mas não necessariamente as formas esporuladas de microrganismos patogênicos (Pelczar, 1990; Domingues, 2013).
O objetivo dos desinfetantes está além da eliminação de patógenos, são importantes na manutenção dos filtros mais limpos, remoção do ferro e manganês, destruição do sulfeto de hidrogênio, diminuição da cor, gosto e odor e ainda são fortemente atuantes na oxidação da amônia, na proteção de membranas filtrantes e controle de algas no pré-tratamento. Além do cloro (CL), desinfetante mais usual, são considerados desinfetantes alternativos, destacando-se por sua usuabilidade e eficiência: dióxido de cloro (CL 2), peróxido de hidrogênio (O3 /H 2 O 2 ), o ácido peracético (CH 3 COOOH), o ozônio (O 3 ), e outros agentes em fase de pesquisa e desenvolvimento, como sais e detergentes. Os biocidas podem atuar sobre os microrganismos de diferentes modos. Alguns modificam a permeabilidade da parede celular, alterando processos vitais que permitem a sua reprodução. Outros reagem irreversivelmente com enzimas do microrganismo, interferindo em todo o seu metabolismo, até provocar a sua morte (Domingues, 2013; Gonçalves, 2002).
Mecanismos
Cloro (Cl)
O principal ou mais frequente agente utilizado nos processos de desinfecção é o cloro. Sua ação biocida está baseada na formação do ácido hipocloroso, resultante da adição de cloro à água
(Tashikawa et al.,2005). A grande questão é que dependendo da dose de hipoclorito, o teor de cloratos pode ultrapassar, na água produzida, os valores sugeridos pela OMS para proteção à saúde humana.
O cloro no tratamento da água pode ter como mecanismos de ação a desinfecção (destruição dos microrganismos patogênicos), a oxidação (alteração das características da água pela oxidação dos compostos nela existentes) ou ambas as ações ao mesmo tempo. Os principais mecanismos de inativação de microrganismos são: Reação com a membrana celular com aumento da permeabilidade e consequentes danos fisiológicos; Interferência na biossíntese e no crescimento, principalmente pelo prejuízo à síntese das proteínas.
O dióxido de cloro reage rapidamente com os aminoácidos cisteína, triptofan e tirosina, mas não com o RNA dos vírus. Durante a cloração a inativação microbiana é influenciada por variações de sensibilidade dos microrganismos. De forma geral, os níveis de inativação de patógenos
mais elevados são obtidos com alta concentração de cloro residual, longo tempo de contato, temperatura elevada, mistura eficiente, turbidez e pH baixos, e ausência de substâncias interferentes (Souza, 2006).
O cloro e seus compostos são fortes agentes oxidantes. O ácido hipocloroso formado, dependendo do pH, dissocia-se gerando H+ e íon hipoclorito ClO- . O processo de cloração deve ser efetuado numa faixa de pH onde predomine o ácido hipocloroso. O íon hipoclorito também possui ação biocida, porém com poder muito menor. Logo, à medida que o pH da água aumenta, o poder do cloro de oxidar e desinfetar diminui.
A comprovação experimental de que pequenas concentrações de ácido hipocloroso destroem bactérias levou Green & Stumpf (apud Laubusch,1971) à formulação da hipótese de que a morte da célula bacteriana era resultado da reação química do ácido hipocloroso com uma enzima, triosefosfato dihidrogenase, essencial na oxidação da glicose e, portanto, na atividade do metabolismo celular (funções respiratórias). Essas interações também ocorrem com outras enzimas. Entretanto, esta enzima, quando isolada, era oxidada por outros agentes que não o cloro, o que não ocorria com a enzima de células inatas. Esta observação indicou que a facilidade de penetração do desinfetante na célula é um fator importante. Além disso, quando ocorre presença de biofilme, o cloro não fornece potencial de penetração e inativação deste sistema.
Em relação aos esporos, provavelmente sua inativação ocorre por métodos distintos daqueles das células vegetativas, conforme observações de que a sua sobrevivência não é dependente da capacidade do cloro de oxidar a glicose. A sobrevivência dos esporos é determinada por sua capacidade de formar células vegetativas e, mesmo após o contato com o cloro, é possível que os esporos continuem capazes de produzir a enzima, o que não acontece com as formas vegetativas, que perdem esta capacidade de regenerar a enzima.
A relação entre o uso de cloro nas estações de tratamento de água, suas reações com os compostos orgânicos presentes e a formação de compostos que poderiam ter efeitos negativos sobre a saúde humana foi estudada pela primeira vez por R. H. Harris, na década de 70 (Santos, 1987), este estudo sugeriu a possibilidade de existir uma correlação entre águas de abastecimento e câncer, devido a permanência de subprodutos na água.
Peróxido de Hidrogênio (O3 /H2 O3 )
Por muitos estudos, é dito como o mais eficiente de todos os agentes desinfetantes. Devido a produção de radicais OH– no meio intracelular (lipídeos, proteínas e material genético), que leva à morte do microrganismos. O peróxido de hidrogênio é um produto muito utilizado no tratamento de águas e efluentes industriais, apresentando uma reconhecida eficiência como bactericida e algicida.
Devido a sua eficiência, é muito utilizado na desincrustação, limpeza e manutenção, em sistemas de condução e distribuição de água. Seu mecanismo de ação envolve ataque da membrana lipídica, DNA e outros componentes das células, pelos radicais livres tóxicos que o peróxido produz. Alguns microrganismos aeróbios são capazes de produzir catalase ou superóxido dismutase, assim eles se protegem da atividade microbicida transformando o peróxido de hidrogênio em oxigênio e água (Costa et al., 1990). Entretanto, os microrganismos anaeróbios são mais sensíveis à ação destes produtos, uma vez que não são capazes de sintetizar a catalase, um enzima que pode decompor o peróxido. E ainda, através da oxidação dos grupos sulfidrilo e das duplas ligações das enzimas das bactérias, provocam uma modificação na estrutura das proteínas que formam essas enzimas, com a perda da sua função e, consequentemente, a morte celular. Em relação aos vírus, pode transmitir esta capacidade de desnaturação das proteínas atuando sobre o capsídeo, de forma que posteriormente, possa atuar sobre o material genético do vírus. Sobre os esporos o peróxido pode transmitir o seu poder oxidante para a desorganização do ácido dipocolínico, molécula que confere a capacidade de resistência tão importante para as formas vegetativas destes esporos. É este grande poder oxidante que garante uma rápida velocidade de ação, ainda que seja necessário, que na sua formulação se juntem produtos que o estabilizem.
Assim, vemos que a ação desinfetante do peróxido de hidrogênio baseia-se em vulnerabilizar as estruturas de proteção destas formas microscópicas. Alterar a estrutura das paredes celulares ou dos capsídeos permite acender ao interior destes organismos, para que o peróxido prossiga com o seu poder oxidante perante outras estruturas como o DNA. Além disso, essas moléculas alteram o funcionamento normal das células o que, inclusive, viabiliza sob ação mecânica, a entrada de água através da membrana celular provocando morte das bactérias.
Ãcido Peracético (CH3 COOOH)
O ácido peracético é um forte desinfetante com largo espectro de atividade antimicrobiana, é usado em várias indústrias incluindo as de processamento de alimentos, bebidas, médica, farmacêutica, têxtil, de polpa e de papel. Devido às suas propriedades bactericidas, viricidas, fungicidas e esporicidas, seu uso como desinfetante recebe cada vez mais atenção (Block, 2001). Como desinfetante de esgoto o ácido peracético apresenta como vantagens: facilidade de implementação de tratamento (sem a necessidade de elevado investimento), largo espectro de atividade mesmo na presença de matéria orgânica heterogênea, ausência residual ou subprodutos tóxicos e/ou mutagênicos, desnecessária descloração, baixa dependência de pH e curto tempo de contato (Souza, 2006).
Seu mecanismo de ação baseia-se na capacidade de promover a desnaturação proteica através da oxidação das ligações sulfidril e sulfúricas em proteínas e enzimas da parede celular dos microrganismos. Possui ação bastante rápida quando utilizado em concentrações que variam entre 0,001 a 0,2%.
Ozônio (O3 )
O ozônio tronou-se notório nas últimas décadas em função da implementação de padrões cada vez mais restritivos em relação aos subprodutos de cloração, e devido à elevada efetividade do mesmo na inativação de microrganismos patogênicos de difícil inativação como oocistos de Cryptosporidium.
A inativação de bactérias pelo ozônio é atribuída a uma reação de oxidação. O primeiro ataque parece ser na membrana bacteriana diretamente nas glicoproteínas ou glicolipídeos ou em certos aminoácidos como o triptofan, e ainda, interromper a atividade enzimática da bactéria. Além da membrana e da parede celular, o O3 pode agir no material nuclear. O ozônio é considerado responsável pela modificação tanto das purinas quanto das pirimidinas dos ácidos nucléicos. Já nos vírus, o local da ação primária para inativação é em seu capsídio (partícula viral completa, consistindo em RNA ou DNA, cercada por uma capa de proteína), particularmente suas proteínas (Souza, 2006).
Por apresentar elevado potencial germicida, inativando tanto bactérias, quanto vírus e protozoários, embora, não seja interessante como desinfetante secundário, devido sua concentração residual decair muito rapidamente, o ozônio é fortemente indicado como agente desinfetante (Souza, 2006).
Mecanismos e Processos
Sinteticamente, estudos demonstram que a habilidade de um desinfetante oxidar ou romper a parede celular, se difundir dentro da célula e interferir nas atividades celulares seja o principal mecanismo controlador da eficiência da desinfecção no tratamento da água. Apesar de prover mecanismos eficientes, a inativação perde eficiência com o tempo, pois certos organismos podem desenvolver resistência aos desinfetantes ou proteger-se dos agentes químicos por adsorção ou sequestro de partículas inertes na água. Verifica-se que, em sistemas de distribuição, mudando o desinfetante químico, muda a população microbiológica resistente remanescente.
Visto que não existe desinfetante “ideal” para toda e qualquer situação, sugere-se identificação dos microrganismos presentes no sistema a ser tratado, dos agentes químicos que possam estar se associando ao desinfetante de escolha, traçando um perfil bioquímico desse sistema.
Dessa forma é possível a implementação de um ou mais processos, que aplicados isoladamente ou de forma combinada (um ou mais desinfetantes), possam vir a ser mais eficazes.
Referências:
BLOCK, S.S. Disinfection, Sterilization and Preservation. 5 ed. Philadelphia, PA: Lippincott Willians & Wilkins, 1481 p. 2001.
Chelossi, E.; Faimali, M.; Sci. Total Environ. 2006, 356, 1. COSTA, A.O.; CRUZ, E.A.; GALVÃO, M.S.S.; MASSA,
N.G. Esterilização e desinfecção: Fundamentos básicos, processos e controles. São Paulo. Cortez, 1990.
Denyer, S. P.; Stewart, G. S. A. B.; International Biodeterioration and Biodegration 1998, 41, 261.
Domingues, P. F. Desinfecção e desinfetantes. Material de aula: higiene zootécnica [online], Botucatu- UNESP, 2013.
FUNASA, Brasília, 2009. Fundação Nacional de Saúde. Manual Prático de análise de água. 3ª. Ed.
Pelczar, M.; Reid, R.; Chan, E. C. S.; Microbiologia, volume 1. Mcgraw-Hill. São Paulo. 1990.
Gonçalves, N. J.; Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, 2002.
Souza, J. B. Avaliação de métodos para desinfecção de água, empregando cloro, ácido peracético, ozônio e o processo de desinfecção combinado ozônio/ cloro. Tese doutorado, Universidade de São Paulo, Brasil, 2006.
Tashikawa, M.; Tezuka, M.; Morita, M.; Isogai, K.; Okada, S.; Water Res. 2005, 39, 4126.